O status quo está invertido nos Estados Unidos: taxas de juros baixas, outrora vistas como estimulantes, tornaram-se essenciais para sustentar os escombros deixados por inadimplências e perdas em cascata de ciclos anteriores. A economia americana depende hoje de dois pilares interligados: juros artificialmente reduzidos e bolhas de ativos. Essa combinação alimenta um ciclo vicioso. Taxas baixas e crédito fácil permitem que compradores marginais — aqueles que não se qualificariam em condições normais — entrem no mercado, inflando a demanda e elevando artificialmente os preços de ativos. Essas avaliações infladas, por sua vez, servem como garantia para novos empréstimos, perpetuando a ilusão de riqueza.
Esse mecanismo foi crucial na formação da bolha imobiliária dos Estados Unidos entre 2003 e 2007. Na época, instituições como Fannie Mae e Freddie Mac (empresas patrocinadas pelo governo americano), aliadas a credores privados e agências de classificação de risco, relaxaram padrões de empréstimo e mantiveram taxas historicamente baixas. Isso permitiu que cerca de 5% dos compradores de imóveis — muitos sem condições reais de pagamento — ingressassem no mercado. Enquanto isso, investidores com acesso privilegiado ao crédito lançaram-se em projetos imobiliários especulativos, muitas vezes em áreas de baixo potencial, para lucrar com a valorização artificial.
A dinâmica era simples: compradores alavancavam a “riqueza” gerada pela valorização de um primeiro imóvel (adquirido com entrada mínima, como 3%) para financiar segundas e terceiras propriedades, muitas vezes antes mesmo de a construção começar. Desenvolvedores lucravam com vendas antecipadas, enquanto os compradores acreditavam piramidalmente em ganhos infinitos. Quando a bolha estourou, a “riqueza fantasma” evaporou, deixando inadimplências em massa, execuções hipotecárias e um rastro de prejuízos que atingiram o cerne do sistema financeiro americano.
O problema é que taxas baixas e crédito frouxo, embora inicialmente atraentes, são como veneno adocicado: viciam o sistema. Quando os efeitos colaterais surgem — crises de liquidez, inadimplências sistêmicas —, as autoridades recorrem a medidas de emergência, como resgates a instituições “Too Big To Fail” (grandes demais para quebrar). Nos Estados Unidos, isso significou socializar perdas: contribuintes bancaram o socorro a bancos e corporações, enquanto famílias endividadas foram abandonadas à própria sorte.
O Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) desempenhou papel central nesse ciclo. Após a crise de 2008, a instituição manteve taxas próximas a zero por anos e expandiu programas de afrouxamento quantitativo, inundando o mercado com liquidez. A justificativa era “reativar o crescimento”, mas o resultado foi uma economia dependente de fentanil financeiro — doses cada vez maiores de crédito barato para mascarar problemas estruturais.
Já as taxas de juros altas impõem disciplina. Nos EUA, quando o crédito é restrito e os juros sobem, consumidores são forçados a priorizar poupança e redução de dívidas. Empresas e investidores abandonam projetos marginalmente viáveis, focando em iniciativas sustentáveis. Essa seleção natural fortalece a economia, eliminando apostas arriscadas e excesso de alavancagem.
No entanto, o cenário atual nos Estados Unidos é o oposto. Taxas baixas tornaram-se um paliativo para conter o colapso de um sistema intoxicado por dívidas. Grandes players financeiros, sabendo que serão resgatados em crises, continuam a especular. Já o cidadão comum, atraído por crédito fácil para imóveis, educação ou consumo, paga o preço quando a bolha estoura — sem redes de segurança.
A lição da história recente dos Estados Unidos é clara: o vício em crédito barato gera crises recorrentes. Enquanto o Fed e o governo insistirem em tratar envenenamento com mais veneno, o ciclo de bolhas e colapsos persistirá. A verdadeira cura exigiria coragem para enfrentar a abstinência — mesmo que dolorosa — e reconstruir a economia sobre bases sólidas.
Enquanto isso, o fentanil financeiro segue fluindo. E ninguém sabe qual dose será letal.